quarta-feira, março 16, 2005

A casa


Tocou a campainha. Era o caminhão da transportadora. Estava tudo empacotado, tudo pronto para ser levado para meu novo lar. Seu Francisco veio acompanhado de dois rapazes. Estes dois últimos faziam o trabalho pesado, enquanto que seu Francisco, um senhor de mais ou menos sessenta anos, orientava os jovens para que tudo fosse feito da melhor maneira possível.
De vez em quando seu Francisco tentava iniciar uma conversa, mas eu, sempre monossilábico, dificultava a comunicação.
- Seu doutor, eu já vi muita gente se apegar a uma casa, mas igual ao senhor nunca vi não.
- Pois é, seu Francisco, pois é...
Realmente. Sou do tipo que se acostuma fácil com as situações. Se pudesse, não sairia nunca daquela casa. Foram dez anos vividos ali. Foi o lugar onde uma família começou a ser construída. E onde a mesma família foi destruída. A casa me trazia boas recordações, mas foram tantos os maus momentos, que não vi outra saída senão abandoná-la.
- Pois é, seu Francisco, pois é...
- O que, doutor?
- Nada, seu Francisco, nada. Cuidado com essa caixa aí. Meus livros estão dentro.
- Ouviram rapazes? Cuidado aí. Ah, seu doutor. Eu entendo o senhor. Nunca é fácil a gente sair assim de um lugar pra ir morar em outro. Mas o senhor vai gostar da outra casa mais do que dessa daqui.
“Bom homem esse seu Francisco”, pensei. Gostaria muito que ele tivesse razão. Adoraria esquecer tudo o que vivera até ali e iniciar uma nova vida em um outro lugar.
Resolvi dar uma última verificada em todos os cômodos da casa. Nada, não esqueci nada. Estava tudo empacotado, tudo pronto para ser levado para meu novo lar. Faltava pouco para sair dali definitivamente.
- Pronto, doutor. Já carregamos o caminhão, tá tudo certinho. Vamos quando o senhor quiser.
Eu estava completamente absorto e mal ouvia seu Francisco. Ele no alto de seus prováveis sessenta anos, disse:
- Ora, doutor! Não fique assim que é pior. Vida nova, se anima doutor!
- Ah, seu Francisco... Isso de fugir do passado não dá certo. Nunca dá. Estou saindo daqui, mas levo roupas que ela me deu, lençóis nos quais dormimos juntos, este relógio... toma, seu Francisco, fica pro senhor. Livros que ela me deu... O passado sempre vai estar comigo, seu Francisco!
Era eu em profundo desespero. Aquelas palavras, meio que cuspidas, foram proferidas sem minha permissão. Era preciso falar, e falar mais, mas diante do olhar surpreso e até assustado do seu Francisco, resolvi me calar. Foi então que com gravidade ele me olhou e, muito sério, disse:
- Olha, doutor, eu não sei de muita coisa, mas de uma coisa eu sei: o passado é passado, passou. Tem coisa que a gente esquece, tem coisa que não. Tem coisa que é que nem fazendeiro quando ferra o gado. Na hora o boi geme, mas depois ele não fica olhando pra marca. O senhor é jovem doutor, tem muita coisa pra viver. Vamo pra sua casa nova, doutor.
Eu não entendi muito bem o que seu Francisco quis dizer com aquela história de fazendeiro e de gado. Mas eu não tinha muita escolha: uma casa nova me esperava.
Rafael Rodrigues

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