quinta-feira, junho 23, 2005

Arbítrio

- Está bem, está bem. Eu vou . Mas espero voltar logo. Não faça cerimônias para me mandar. Já que tudo se encaminha para esse lado. Concordo com você. Irei o quanto antes. Não levarei nada. Lá tudo se consome, não é mesmo?
Por acaso faz alguma idéia de como é? Além do obvio que todo mundo já sabe. Certo. Então você só é o porteiro, de fato nunca entrou pra conhecer.
Mas que bom que há volta. Algumas escrituras e vários fofoqueiros dizem que não há. Ou estou enganado? Ah, não sabia disso. São círculos então. E pra onde vou é um sub-circulo. Está explicado. Não é propriamente o lugar. Irei dizer que é um tipo mais leve. Sem aquelas pregações de ódio mortal e dor.
É raro irem por espontânea vontade como eu? Verdade? Sabe, eu pensei da seguinte maneira. Pouco a pouco eu me sinto cada vez mais próximo. Levemente com uma moeda aqui, uma lasca mais adiante, como metáforas e luzes que não funcionam mais. Quando descobri que essa estranha possibilidade poderia acontecer. Pensei "Não devo ter mais nada a perder, porque não?" e claro se voltar posso dizer com muita honra a todos que me confrontarão nesses anos próximos que sim, fui e enquanto todos vocês só lêem a respeito eu fui até lá. E voltei.
Será que marca alguma coisa? Espero que não fique em meu rosto. Sei que não interessa. Mas eu gosto do meu rosto. Ele ainda consegue ser jovial. Não condiz com seu interior. É bom ao menos para manter seu espelho perante os outros.
Você fica muito sozinho aqui? Imaginei que não. Embora me disseram que isso é para poucos. Que? Ah sim, só a volta é para pouco né. Tenho que concordar com seu comentário. Mas acredito que fará bem para mim. Talvez eu seja muito niilista mas será mesmo necessário fechar os olhos para enxergar com mais luz na próxima abertura? Às vezes desconfio dessas parcas teorias. Os filósofos não dizem nada que eu não possa dizer também. Verdade que pensa assim? É bom saber que compartilha da mesma linha de idéia que eu.
Me diga uma coisa, como se consegue um trabalho desses? Você me parece uma boa pessoa. Achei que aqui iria encontrar um jovem Frankstein. Desfigurado e talvez até mórbido. Mas creio que exagerei em minha imaginação. Claro que sim, fique a vontade para contar o que quiser.
Um padre? Nossa, parece uma história daqueles livros de bolso dos anos 80. Chega a me dar um certo arrepio. Não acredito muito nessas coisas. O que é estranhamente paradoxal. Se não acreditasse, não estaria aqui, certo, meu amigo porteiro?
Acho que meu relógio parou. Não me venha com histórias. O tempo não pode parar em nenhum lugar. Ele sempre é constante e envelhecedor.
Cheguei cedo demais não é? Vim só para averiguar. Saber como funciona. Mas você é um bom vendedor. Me convenceu de primeiríssima. Estou até animado. Sem receio nenhum. Ciente de tudo que irá acontecer.
A neblina está se mexendo? Está chegando. Que ótimo. Me diga, piora até lá ou o caminho já machuca? Ao menos um pouco de calmaria. Sim, concordo, a calmaria antes da tempestade.
Acredito que ficará solitário agora. É para poucos, mas não imaginava que era tão poucos assim. E pelo movimento da neblina a frente de nós parece tão grande.
Então quer dizer que existem muitos lugares e esse é um dos últimos... É, faz sentido ter só eu aqui na espera. Ele encosta? Faz alguma alguma pausa? Ou tenho que ir rapidamente ao encontro? Certo.
E meu maço de cigarros eu... Tenho que deixar aqui mesmo? Porque? Hum... Evitar válvulas de escape né... Concordo. Mas o que no final se ganha com isso? Além dessa fração exorbitante que não está mais em meus bolsos? Ah, não se ganha com o que volta e sim com o que fica.
De fato se torna algo sem preço comensurável.
Bom colega, acredito que finalmente é hora de dar alguns passos adiante.
Foi um imenso prazer dividir esses escassos minutos com sua presença, agradeço por suas informações que mataram um pouco minha curiosidade. E por favor, você fuma? Então fique com os meus cigarros. Só tinha pego dois ou três, os outros estão intactos.
Muito obrigado amigo, você é cordial assim com todos? Que bom que gostou de minha presença, perdão se falei demais, esse meu jeito chega a incomodar.
Foi justamente o que pensei, que talvez você ficasse sozinho aqui. Achei que um pouco de conversa não faria mal. E sinceramente não fez.
Um aperto de mão e até amigo. E assim como você disse, espero que em breve eu esteja pisando por essa área.
Chego até ousar a prometer que voltarei aqui, não para ir de novo, mas para lhe dar um aperto de mão sincero. Obrigado.

E finalmente embarcou. Examinava rapidamente o que estava ao seu redor. Era possível perceber que estava levemente inquieto.
O Velho porteiro ainda tinha a navegação em seu campo de visão, ainda era possível visualizar no convés o colega que minutos atrás aquecia sua noite com palavras dispersas.
De longe, sendo abraçada pela neblina, a embarcação caminhava. Não era possível saber se para leste ou oeste, norte ou sul.
Mesmo estando quase encoberta pela noite. Ainda conseguia se ler o nome da condução. Escrito em amplas letras pálidas. "Barca Do Inferno" marcava sua lateral.

Thiago Augusto
(15/07/04)

1 Comentários:

Às 5:12 PM , Anonymous Anônimo disse...

"Ontem, a noite foi de sofrimento e angústia. Olhava minha mesa, meus cadernos, meus escritos e a vontade era jogar tudo pela janela. Minha cabeça doía, meu estômago doía e a única pessoa que me observava, meu gato, não tinha respostas para nenhuma das minhas perguntas.
(...)
Quando olhei novamente para minha mesa, meus cadernos e meus escritos, tudo fez sentido de novo. Eu sabia que a literatura de histórias estava morta e que havia perdido tempo com ela. Eu sabia que meus escritos não poderiam sair de minha cabeça como meras histórias. Então, tudo ficou claro, apesar de ser uma noite sem estrelas. (...)"

Que.. sublime!
Inexplicavelmente o texto que arrancou lágrimas dos olhos. Não fala sobre amor, morte, angústia. Não traz identificação, traz PAZ.
Muito bom!

 

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